Devia ser cada vez mais fácil decifrá-lo. Mas não é. Samuel Úria é rebuscado, cifrado e, para dificultar a tarefa, está cheio de conteúdo para desvendar. Para quem não sabe, o Sami sofre de excesso de informação; não consegue esquecer o que aprendeu. É a característica que mais o define, para mim. Um Ser enorme, de sono pouco profundo, cheio de informação armazenada às vezes sufocante, da qual não se consegue livrar. E assim cresce, alimentado a conhecimento, e com uma memória que não falha.
Quando as canções se enchem de referências a uma série de nomenclaturas, acasos e ocorrências, personagens ou episódios que temos de pesquisar se quisermos entender tudo, é a essa memória que o devemos. E aí vemos o Samuel a ser ele próprio.
Não é assim por charme ou pretensão de mistério – é apenas algo a que ele não consegue resistir. O brio que tem na linguagem não lhe permite dizer as coisas de uma forma “mais ou menos”. Ele tem gosto em procurar as palavras, e coloca-se o desafio feroz de ser ora exato e preciso, ora ambíguo e vago, cruzando consoantes e terminações de forma astuta, aliterações e demais figuras de estilo para nos confundir.
E é assim que dá corda a si próprio, e a nós: é que ao mesmo tempo desafia-nos constantemente para o acompanharmos na mensagem e no gosto de a decifrar. E nós aceitamos o desafio, gratos por aprendermos mais um pouco, gratos por ele nos ceder um vislumbre desse enorme dom que é saber observar e digerir o mundo de um ponto de vista elevado; juntos, ombro a ombro, com maior sapiência e humor.
Ouvimos neste disco vários momentos aparentemente opostos, e quase de forma alternada de faixa para faixa – o som da força e da perseverança é o grito de ar nos pulmões que impele um amigo a sair do chão; que repreende a estupidez de misturar saber com opinião, e denuncia o ridículo do medo que leva ao silêncio. E depois, o sussurrar de um segredo confessado quando nos diz que quer estar pronto a dizer “não sei”, que quer ser apenas mais um; mais um homem, vulgar e comum.
Quando em concerto, lá aparece ele em palco cheio de luz num passar único e genuíno como só ele próprio. Volta e meia dança com aquele ar meio desengonçado, cheio de um ritmo muito dele, parecendo um gigante que se vai desconjuntar, mas que aproveita cada momento dessa desestruturação, com prazer e alegria contagiantes.
Surge várias vezes a criança que se diverte com o corpo inteiro, que não pretende agradar nem imitar ninguém; e nisso tomamos noção de que, tanto em palco como em disco, ele é que é totalmente inimitável. E não há dúvida que neste disco aparece uma verosímil autobiografia do Sami: um ser enorme que já não cabe na própria casa, e quer abreviar-se para ocupar pouco espaço, apequenar-se para ficar à mesma altura de ombro que nós. Mas na verdade só consegue saber crescer com tanto que assimila dos livros de engordar no topo da estante, à qual poucos de nós temos acesso.
Modesto, generoso e altruísta, é claro que ele acha que o Ego dele tem de diminuir. Mas nós que o vemos, sabemos que não é de Ego que se agigantou Samuel Úria, mas sim de um incomensurável talento que dá gosto testemunhar de disco para disco.
Márcia